Um país obrigado a mudar
- Luis Manuel Silva
- 19 de mar.
- 4 min de leitura
Nos anos sessenta, do século passado, Portugal começou a sair da Idade Média para entrar na modernidade. Os homens fugiam para França, os jovens morriam nas guerras de África e as mulheres tomaram conta do aparelho produtivo do país.
Texto do livro: O Futuro Põe-se ao pôr do sol

Felgueiras era uma vila rural, medieval, cristalizada no tempo. As pessoas viviam do campo e pouco mais. À volta da vila, cirandavam muitos e velhos mestres artesãos com profissões mais antigas que os seus avoengos, ajudantes e inventores de um país, tão antigos como os contadores das histórias que as fizeram passar aos escreventes da Bíblia. Eram tamanqueiros, cesteiros, fiadeiras de trapos, rendeiras de bilros, latoeiros, ferreiros, pedreiros que trabalhavam a pedra, trolhas que amassavam o saibro e a cal, oleiros... Construíam ferramentas e utilidades caseiras exatamente da mesma maneira que os artesãos bíblicos e de Afonso Henriques!
À semelhança de Felgueiras, muitas mais felgueiras existiam por esse país fora, paradas no tempo. Quanto mais para o interior, mais próximo dos tempos bíblicos. Quanto mais para o sul, mais próximo da servidão feudal, quanto mais serranos, mais escondidos estavam nos buracos. O Algarve continuava um reino esquecido. A eletricidade era uma quimera! O fedor a petróleo e azeite reinava no país sob a forma de pequenas estrelas cadentes que iluminavam as casas escuras durante a noite feudal perdida no tempo. O mais parecido com a eletricidade, próximo das minas, era o gasómetro de carbureto, perigoso para os desajeitados, de cheiro desagradável e intenso, e mesmo assim o início da noite com luz mais brilhante: valia o risco de uma explosão. Tudo o que eram cheiros agradáveis, o carbureto embrulhava-os. Apesar disso, trocava-se o cheiro agradável da sopa com unto pelo fedor do carbureto: a luz compensava.
Até mesmo nas grandes cidades de Lisboa e Porto, nas casas mais antigas dos bairros históricos, o bacio fazia parte da rotina diária, onde todos faziam as suas necessidades, e despejavam-nos numa pia coletiva. Os mais abastados numa privada. Nas pequenas cidades ou vilas, se as construções estivessem próximas de terreiros, baldios, pequenos ribeiros ou rios, os dejetos eram lançados a partir das janelas, quase sempre nas traseiras, para esses espaços. As traseiras dessas casas eram uma imensa retrete a céu aberto, onde pastavam as varejeiras, e pelas janelas vinham recrear-se no interior das casas.
O cântaro, a bilha ou a bacia faziam parte dos bens mais preciosos que uma casa podia ter para ir buscar água à fonte, ao rio, ao poço, para os usos da casa. A água era o bem mais precioso que uma casa podia ter. Gerida com avareza utilizavam-na na cozinha, para usos diários, onde nem uma gota de água se desperdiçava porque ia sendo reutilizada em tarefas cada vez mais sujas. Até a água que cozia as batatas era aproveitada para ser reutilizada. A última utilização, depois de reutilizações sucessivas, acabava quase sempre num penico ou algo parecido com isso. Os banhos, numa grande e larga bacia, eram semanais e quase todos se lavavam na mesma água. Era na água que se revelava toda a capacidade criativa da mulher ao conseguir estender a utilização de um cântaro cheio, ao longo do dia, para todas as atividades caseiras. Apesar de tudo, de há uns anos a esta parte, via-se que o país estava a mudar. A cristalização no tempo começava a fragmentar-se. As fissuras alargavam.
O país mudava e mudava muito! Só o regime é que não: cristalizara. Alguma coisa corria mal. Um país em guerra com uma guerra maior que o país; um país donde fugiam os melhores e os mais experientes homens para a Europa; um país donde eram enviados os mais jovens para serem sangrados em África; um país onde só havia crianças, falsas viúvas e velhos; um país onde as mulheres, pela força das circunstâncias, eram uma força revolucionária que emergia da estagnação dos tempos, sem que ninguém se apercebesse, ou apenas poucos o percebiam; um país que, apesar de tudo, mudava, mas não mudavam os que nele mandavam, era um país cansado à espera de cair de maduro. A televisão, ainda bebé, de cueiros, mostrava nos curtos noticiários de regime quão maduro estava! Só precisava de um abanão... Algo estava mal... Um país não podia ser governado por homens que nunca morriam.
Se é verdade que os jovens, com paixão e ímpeto para a criação e realização, precisam de experiência, passada a fogosidade da juventude, têm maturidade para chamar a si a responsabilidade da administração, qualquer que ela seja, pública ou privada; também é verdade que aos velhos, velhos demais, embora com experiência, falta-lhes o génio da rebeldia que conduz à transformação. Cristalizados no tempo, têm medo da mudança, assustam-se com ela, são uma força de bloqueio: a brevidade da vida inibe-os e atira-os para o conforto conservador do conhecido. Nesta fase da vida, o melhor serviço que ainda podem e devem prestar à sociedade é retirarem-se com dignidade. O seu papel é, porém, importante. Como conselheiros, podem temperar os ímpetos da mudança, promovendo uma transição suave e pacífica. As três idades da vida podem promover o progresso e a mudança harmoniosa do país, se for criada uma cultura de compatibilização e oportunidades para todos, para que frutifique.

Este texto reflete as tensões entre o passado e a mudança, mostrando como as diferentes gerações podem contribuir para o progresso de forma harmoniosa. Este texto foi retirado do meu livro "O Futuro Põe-se ao Pôr do Sol". Clique aqui para comprar na Amazon.
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