top of page
Buscar

OS PORTAIS DE ENTRADA PARA O ÉDEN

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 24 de jun. de 2024
  • 3 min de leitura

Uma história de amor em tempo de guerra
O Futuro Põe-se ao Pôr do Sol

...observava, sentada a uma mesa, no outro canto do salão, junto à janela, uma jovem dos seus trinta anos a comer sozinha. Era elegante, bonita, cabelo comprido, muito negro, que lhe caía ligeiramente ondulado um pouco abaixo dos ombros nus. Tinha um pequeno decote, nada pronunciado, o suficiente para deixar perceber um peito bem feito e harmonioso. O achocolatado que o sol africano tecera na pele atraía o olhar para o rosto, a nudez dos ombros, dos braços, das pernas perfeitas e delicadas. A saia branca terminava ligeiramente acima dos joelhos. Comia com cuidado, degustava com prazer, era requintada nos gestos das mãos com os talheres. O furriel deliciava-se com aquela visão, desligado das conversas dos amigos. Procurava ver-lhe discretamente o rosto e, do que vira, achava-o divino. Depois da tensão dos últimos dias e de uma viagem sofrida, se houvesse paraíso, aquela era certamente a visão para os portais de entrada para o Éden. Os seus olhos fixos no prato observavam com minúcia os bocados da carne que ia cortando com todo o vagar que o calor lhe permitia para não transpirar, fruto da sabedoria de quem aprendera que a pressa era o maior inimigo do prazer das pequenas coisas que o talhar e saborear proporcionam. De vez em quando, levantava os olhos e deixava que o olhar vadeasse pela sala, detendo-se num ou noutro pormenor que a atraía. E então demorava-se. Parecia deliciada!

O furriel observava aquele olhar vadio e procurava seguir-lhe os movimentos. Pelo tempo que demorava a deter-se, percebera que não estava interessada nos rostos dos presentes. Quase todos homens. Jovens. Militares. Gente preste para a guerra. De uma vez cruzara-se com uma jarra de flores coloridas em tons de amarelo, laranja, encarnado e verdes: uma explosão de cores vivas e quentes. De outra, num outro lado do salão, um conjunto de tecidos leves, multicoloridos, pendentes e ligeiramente esvoaçantes pela brisa que entrava por uma pequena e estreita janela atraíam-lhe a atenção. Parecia embevecida com isso. As cores, de facto, eram abundantes, alegres e casavam-se na perfeição. Não sendo conhecedor e pouco dado a arranjos florais ou tecidos coloridos, começava a perceber, e até achar piada, que estava próximo e em sintonia com o bom gosto e interesse dela por aquele colorido coerente de cores fortes e expressivas. Uma outra vez, pareceu-lhe que detinha o olhar para além da janela do salão das refeições. Procurou ser discreto e perceber por onde errava. Não viu nada que pudesse denunciar o foco do seu interesse por estar fora do horizonte.

Na perseguição daquele olhar, foi surpreendido pelo cruzar do dela. Por um ténue momento, fixaram-se e logo os desviaram, envergonhados, apanhados numa invasiva devassa. O magnetismo instantâneo teve o condão de o capturar. Não sabia dizer quem foi o primeiro a acusar aquela atração, desviando-o de seguida: se ele, se ela, se os dois ao mesmo tempo. Depois da devassa apanhada em falta, outros, espevitados pela curiosidade fatal, seguiram-se mais frequentes, mas desviavam-se envergonhados, agora sem convicção. Nele permanecia a dúvida se era o cruzamento de um olhar casual, como tantas vezes acontece, ou o desejo de que tal não fosse. Da parte dele, era tudo, menos acidental. Propositadamente o perseguia. A determinada altura, aqueles olhares cruzados deixaram de ser fortuitos. Davam sinais, quando olhavam, de que havia interesse e curiosidade. Converteu-se depois num olhar que procurava, que se tornou insistente, que se encantava! Havia uma atmosfera de magia centrada nos olhos, e através deles, um certo conforto e bem-estar, o suficiente para se sentirem bem, sorrirem de uma forma suave: deliciavam-se no olhar do outro.

Agora que a via de frente, sem constrangimentos, via naqueles grandes olhos, adivinhava que negros, semelhantes ao negro dos cabelos, a meiguice cândida e inocente, a ternura que lhe faltava...


Texto retirado do meu livro "O Futuro Põe-se ao Pôr do Sol"









 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

© 2025 todos os direitos reservados a Luis Manuel Silva

bottom of page