OS AMIGOS DE UMA VIDA
- Luis Manuel Silva
- 16 de abr. de 2024
- 4 min de leitura
Amigos
Em tempos, eu e um amigo das engenharias, num momento de descontração e pausa de estudo para o exame de uma disciplina com elevado índice de chumbos, calhou falar de amigos. Toda a família dele, pais, irmãos, possivelmente avós, eram naturais de Angola. Com o 25 de Abril, a incerteza em Angola e a caça às bruxas que se seguiu, depois da independência, meteram-se num avião e vieram refazer a vida para Portugal. Ele e a família faziam parte das centenas de milhares de retornados. Foram tempos difíceis para quem estava, mais difíceis para os que retornavam. Quando lhe perguntei como tinha sido a adaptação, que acontecera aos amigos, como fizera e se adaptara aos novos, respondeu-me que era muito pragmático: «Para mim, os amigos são todos aqueles que vou encontrando pelo caminho. Uns ficam, outros vão ficando; outros são amigos de ocasião, dos copos, da faculdade... todos eles, independentemente de ficarem ou se perderem, são importantes para a nossa vida. Com eles crescemos e ficamos melhores. Com eles nos realizamos.» Palavras sábias, e continuou: «Se precisarmos deles num futuro longínquo, se os procurarmos e puderem, sabemos que podemos contar com eles e respondem presente.»
Tipos de Amigos
Esta conversa aconteceu há muitos anos. Desde então, nunca deixei de pensar nas suas palavras, nos vários tipos de amigos que vamos colhendo pelo caminho. De facto, ao longo da vida, vamos semeando e colhendo amigos. Pensando bem, esta minha longa caminhada ajudou-me a semear, colher e perder amigos num trajecto que já vai longo. Ao olhar para trás, vejo que tive os meus amigos de infância, da primária, do bairro, da catequese, do ensino secundário, de profissão, da tropa, da guerra, de Angola, da faculdade, dos namoricos, dos vários empregos por onde passei, dos copos, do grupo dos casados, dos divorciados, da reforma, das viagens, e outros grupos que vamos encontrando e saindo, de cada vez que mudamos de atividade, de terra, de morada... e por aí fora.
Os Amigos de Infância
Todos eles foram importantes para o meu crescimento. Se a educação conta muito, e conta, também os amigos nos ajudam a moldar a pessoa que somos. Cada um destes amigos é importante para uma determinada fase da nossa vida. Os amigos de infância são os amigos de uma vida para a vida. Ainda que lhes percamos o rasto, estão sempre presentes. Se tivermos um problema e os procurarmos, não são politicamente corretos. Dizem o que pensam, são verdadeiros e até conseguimos aceitar as suas críticas. Como cresceram connosco, conhecem-nos, sabem como somos, são leais. Mesmo que deixemos de ver um deles durante quarenta anos, quando nos reencontramos, conversamos e continuamos com as mesmas conversas que a vida interrompeu. É como se nunca nos tivéssemos separado. Dois amigos de infância, ambos perdidos no tempo — cerca de cinquenta anos —, surpreenderam-me como neles perdurou a força da nossa amizade. Quando falei com cada um deles, em tempos separados, não só me reconheceram de imediato, como sabiam o meu nome completo e morada; e ainda me relembraram pormenores da vida que havia esquecido. Ambos tinham vidas intensas. Foi, precisamente, essa intensidade de vida que que me surpreendeu: como foi possível que a vida os deixasse reter lembranças, que eu próprio esquecera? São os mistérios da amizade. Mergulhamos nos tempos longínquos e prometemos recuperar as vidas que o tempo perdeu.
Os Outros Amigos
Os amigos dos copos estão sempre disponíveis para nos ajudarem a abrir ou fechar portas quando falamos das nossas vidas, dos nossos amores, dos nossos filhos. São amigos dos copos sensatos, mais interessados em resolver os nossos problemas do que deixarem-nos a caminhar por estradas sem destino. O amigo dos copos está lá para aquela ocasião. É o psicólogo que nos ouve e ajuda sem pedir nada. Hoje, por mim; amanhã, por ti.
Os amigos de profissão e universidade são aqueles a quem recorremos quando estamos com um problema profissional de difícil solução. Muitas vezes, basta o relato da dificuldade para encontrar a solução. E se não a encontramos, apontam saídas ou sabem quem pode ajudar. Nunca me lembro de ter recorrido a um amigo de profissão ou escola, ao fim de dez ou quinze anos, que não me tivesse ajudado na procura de uma solução. O contrário também é verdadeiro: nunca nenhum ficou pendurado por falta de ajuda.
Os amigos da guerra são especiais. São camaradas. Não são familiares de carne e sangue, são mais: são amigos de alma, espírito e sangue — como diz o poeta. Atravessaram-se na nossa vida, deixaram a sua marca, morrem connosco. E por aqui me fico.
Depois temos os casais amigos, os divorciados amigos, os amigos dos amigos, os amigos das nossas famílias, todos nossos amigos. Quando passei à reforma, fui criando mais amigos: os amigos das jantaradas, os amigos dos passeios de fim-de-semana, os amigos das viagens e por aí fora. Destes amigos dos almoços, fins-de-semana e viagens, faço parte de um bom grupinho que fazem o favor de me ajudar e alertar para mais uma nova saída, fora ou dentro, tanto faz. Felizmente, tenho no grupo quem vista a camisola, puxe a carroça: grupo sem comandante funciona mal.
O Melhor Amigo
Chegados aqui, tenho de reconhecer que todos estes amigos nos fazem falta. Quando temos um problema, sabemos exatamente qual deles nos vai ajudar: o de infância ou da tropa? O da faculdade ou das namoradas? Todos eles são desconhecidos e independentes entre si e raramente se cruzam com os outros. O único ponto comum que os une, sou eu, o vértice desta larga pirâmide que fui construindo ao longo da vida. Jamais irei encontrar muitos destes amigos, mas tenho a certeza, certezinha absoluta, que se me encontrar com algum, irei continuar com a mesma conversa interrompida há dez, quinze... cinquenta anos. Já me aconteceu algumas vezes e foi muito agradável. É um banho de felicidade. O corpo deforma-se, mas os tiques, a maneira de ser e falar permanecem os mesmos. Os idosos estão convencidos que os anos formatam as pessoas. Só quem passou por uma longa experiência de ausência é que sabe o quanto a morfologia se altera. Mas não altera a alma do jovem de vinte anos num corpo de setenta ou oitenta.
Um PS: A vida surpreende-nos. Felizmente, depois deste escrito, mergulhei nas vidas de dois amigos de infância. Foi bom.
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