top of page
Buscar

O Amigo Americano

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 1 de abr.
  • 6 min de leitura


O fim do sonho americano ou o início de o redesenhar de um novo mapa-múndi? Depois de tantos anos de bom relacionamento e convergências de mútuo interesse, quem perde, quem ganha? Que esperar do bom amigo americano?


Estátua da Liberdade, uma representação do Sonho Americano
Estátua da Liberdade, uma representação do Sonho Americano



O Primeiro contacto que tive com a América, tinha 9, 10 anos de idade. Nessa altura, o meu pai, um analfabeto, aproveitava os meus parcos relacionamentos com as letras para lhe ler as principais notícias que apaixonavam os anos 50/60. Desde que a censura o permitisse, gostava de estar a par do que se passava no país e mundo. Foi num desses momentos que conheci a América.

Caryl Chessman, o preso da Cela da Morte 2455, conseguiu captar as atenções americanas e mundiais com a sua história de encarcerado. Acusado de vários delitos, disse sempre que estava inocente do crime que o matou. Preso durante doze anos, recusou sempre ser defendido por advogados. O seu percurso de vida na prisão, e a afirmação de inocência, levou-o ao estudo do direito penal. Os tribunais e os recursos sucessivos fizeram dele uma figura apaixonante. Sem advogado, com argumentos e contra-argumentos, enchia os jornais mundiais com parangonas e pedidos de comutação da pena capital que vinham de todo o lado: cidadãos comuns, chefes de estado, papa e os principais “influencers” da altura.

Este caso e outros ensinaram-me a conhecer a geografia e a teimosia americana. Também me ensinou a ver que era um espaço de liberdade e conhecimento, um lugar onde era possível ganhar a vida e singrar. Durante a adolescência e até próximo de ir para a tropa, as “coboiadas”, os tiros nos índios, o desbravar do oeste selvagem, as cavalgadas nos grandes espaços, alimentaram ainda mais o meu sonho de viver naquela inatingível paragem. A guerra do Vietname abalou um pouco o meu sonho, agravado pelo conhecimento de um jovem da minha idade, filho das primeiras gerações, que aqui veio parar para escapar. Não sei se escapou ao Vietname; eu fui apanhado por África.

Quando regressei da guerra, o sonho americano ainda estava presente. Apesar de ter as malas aviadas, adiei. Um casal amigo não. Realizou o sonho americano, vive bem, dificilmente regressa. Desenraizaram num lado, enraizaram no outro.

Os anos passaram e o meu sonho foi ficando. O meu conceito de um espaço de fortuna, paz e liberdade foi-se alterando. Fui abalado com as mortes dos irmãos Kennedy e Luther King. Quando tomei consciência de que as lutas dos negros americanos eram o resultado de uma vivência esclavagista dos finais do século xix, ainda muito presentes nos meados do século xx, fiquei com a sensação de que a América dos meus sonhos tinha bolsas de miséria semelhantes aos dos estados africanos mais pobres. O Harlém, muito pior do que o Bairro Alto ou Intendente da minha adolescência, em Nova Yorque, era o paraíso se comparado com as vivências negras nos estados esclavagistas.

O sonho americano deixara de ser sonho, perdera a inocência, começava a ser um pesadelo. A América é bem real e é capaz do pior e melhor. É uma grande nação com dois projetos diferentes: um estagnado e retrógrado, outro virado para o futuro.

Quando comparo as duas, vejo uma inculta, analfabeta, com horizontes estreitos, tipicamente machista. Um machismo diferente do marialvismo, mas selvagem. Basta ir para os estados interiores e ver como se comportam as religiões. Se perguntar à América profunda e rural onde fica Paris, é capaz de dizer que fica no estado vizinho. Muitos estados sulistas e da América profunda ainda estão presos às saudades de uma época de liberdades para brancos, principalmente os mais abastados. Já a América futurista, com um pouco de esforço, é capaz de saber onde fica Lisboa.

A América é o que é, e de lá recebemos os grandes acontecimentos históricos. Queiramos ou não, é uma bússola que aponta o caminho.

Conhecemos a estagnação e o seu pior: os massacres dos índios, o esclavagismo, os grandes assassinatos de figuras e em massa, a ku klux klan, os amish e os mórmons, os genocídios de filipinos, os estranhos frutos de Billie Holiday... No que respeita a álcool e mulheres, se bem que de uma forma dissimulada, alguns estados não são diferentes dos comportamentos de alguns países muçulmanos mais conservadores e radicais.

Também conhecemos o melhor da América: a emancipação da mulher, a luta do operariado, as invenções que mudaram o mundo na transição do século xix para o xx, o transístor, os movimentos jovens pós segunda guerra, a liberdade sexual das mulheres, o make love, not war, o primeiro homem na lua, os direitos civis, a Segunda Guerra Mundial — sem eles, falávamos alemão —, o Plano Marshall.

Da América, veio também o Elvis Presley, ou Elvis the Pelvis. Sem que tivesse ideais políticos, Elvis era um romântico e um tímido rebelde. Deu início à maior revolução cultural e comportamental dos jovens, desafiou as normas sociais com os seus movimentos pélvicos atrevidos e escandalosos, fez o caldeamento da música negra com a branca, foi um farol para todos os movimentos rebeldes juvenis que lutaram pela independência tutelar patriarcal, influenciou todos os movimentos artísticos e musicais de grupos de bandas e artistas a solo, inspirou os movimentos hippies, feministas e de protesto contra a guerra do Vietname.

Esta é a América dos meus sonhos. Vibrei quando o homem andou na lua — vi-o dar o primeiro passo, quando estava na Praça do Município, em Lisboa —; não perdia os movimentos pélvicos de Elvis no cinema; ficava com raiva quando as bombas de napalm queimavam os homens e a floresta nos caminhos de Ho Chi Minh; sofria com as peripécias de fuga do meu amigo americano para fugir ao Vietname; fiquei deslumbrado quando o primeiro transístor substitui uma grande caixa de válvulas para reproduzir a voz; já para não falar do computador, da net, do telemóvel, da inteligência artificial...

Aconteça o que acontecer, para mal dos meus pecados e da inocência europeia, estamos irremediavelmente ligados, para o bem e para o mal, ao sonho americano.

Infelizmente, os sonhos também se podem converter num grande pesadelo. Ultimamente tenho tido alguns. Quando leio ou ouço na comunicação social que os residentes legais de longa data nos Estados Unidos têm vindo a apagar as críticas políticas nas redes sociais com medo de serem deportados; quando leio que a América tem vindo a dar instruções às embaixadas para informarem as empresas que têm empregados de género diferenciado que não poderão negociar com os Estados Unidos; começo a ficar com a pulga atrás da orelha. Vi isso antes de Abril, passava-se o mesmo com Franco, sabemos que é assim com Maduro e Putin. Também não esqueço de que ouvi o próprio dizer na campanha eleitoral de que só precisavam de votar uma vez.

Sei que a Inteligência Artificial veio para nos facilitar a vida, mas também pode ser aproveitada para manipular verdades e mentiras. Mas a forma como a atual administração americana trata os seus aliados mais antigos na Casa Branca, nas visitas à Europa e Gronelândia, como humilhou Zelensky e continua a tratar os ucranianos, como se aproxima e bajula Putin, tudo me leva a crer que não é manipulação da IA: é bem real. Hoje, mais do que nunca, devemos estar atentos para apelar ao nosso bom senso de análise e crítica.

Não esqueço que na década de 80/90, o Harlém era um antro de vícios, drogas e segregação: América no seu pior; atualmente, ainda não conseguiu fugir por completo do seu passado, mas está no bom caminho e podemos desfrutar daquele espaço com segurança: América no seu melhor.

Pagamos aos americanos um preço muito alto para ser defendidos e ajudados. Esse preço deu emprego aos Estados Unidos, modernizou a América, criou o maior exército do mundo, deu-lhe uma vocação imperialista global e a pedido, coisa de que nenhum império se pode gabar. Pagamos bem e pode-se considerar que foi um preço justo pela reconstrução europeia e o conforto da defesa. Se os Estados Unidos dizem a uma Europa adormecida que é pouco, então é tempo de acertar as contas. Pode-se começar por gerar emprego nas indústrias polivalentes, modernizar, criar um exército que nos defenda. Se queremos a paz, podemos não fazer a guerra, mas temos, pelo menos, de ter forças armadas que nos defendam. Não é preciso ser mais fortes, basta que falemos de igual para igual.

Em tempos recuados, Albuquerque disse ao rei: se quereis boa paz, tereis de estar preparados para uma boa guerra. Mandai boas naus, bons homens e boas armas; gente honesta que saiba ler e escrever para ensinar e criar na Índia bons criados. Eles serão bons servos que vos serão fiéis e com eles segurais a Índia, o maior tesouro que algum príncipe jamais teve.

Não precisamos deixar de ser amigos do amigo americano, só precisamos de falar com ele. O sonho americano acabou.



Os meus livros
Os meus livros




















 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

© 2025 todos os direitos reservados a Luis Manuel Silva

bottom of page