Mosteiro da Batalha
- Luis Manuel Silva
- 5 de mar.
- 3 min de leitura
Texto do meu livro “Madalena”
O romantismo de uma visita ao Mosteiro da Batalha desperta em ambos memórias de tempo passados e presentes. Por razões diferentes, comungam dos mesmos arrepios e emoções.

Dali fomos até ao Mosteiro da Batalha, símbolo de sofrimento, vontade, querer, vitória, humilhação. Ali estava a afirmação de um reino que impunha a sua vontade a uma Castela humilhada. Entrámos e aquele espaço impunha-se pelo respeito que inspirava. Ainda que não se conhecesse a história que levou à construção do mosteiro, ninguém ficava indiferente à imponência de uma igreja que se elevava aos céus por grossas e trabalhadas colunas. Os vitrais coloridos das janelas espalhavam uma luz difusa, multicolorida, pelas paredes e pavimento. Quem conhecesse a história, não deixava de sentir a dor e o sofrimento que conduziu à construção daquela afirmação de liberdade antiga. A capela do fundador projetava ainda mais essa sensação. Ali estava D. João I, rei de Portugal pela Graça de Deus, a firmeza de Nuno Álvares, os buracos encontrados na lei, para a justificação da eleição de um rei, por João das Regras, o apoio do povo de Lisboa e a decisão das Cortes da Nação. Nunca, até então, um rei fora legitimado por gente grande e pequena, a Arraia Miúda, de Fernão Lopes, de todo um reino, que via em João o seu rei legítimo. Um rei sensato, prudente, miudinho na decisão, porque tudo tinha de ser ponderado ao pormenor. Em cima do cavalo, com o ferro na mão e a vontade na cabeça, acorria a todo o lado para apagar os fogos que iam surgindo no reino. Estratega meticuloso, foi preciso a impetuosidade de Nuno Álvares para o obrigar a combater em Alfarrobeira. As decisões, porque eram pensadas e repensadas, eram lentas, mas quando decidia era uma força da natureza que ninguém parava. Nem a morte da rainha, que amava, nas vésperas da partida, o deteve e seguiu para Ceuta com os filhos. De tal modo se entendiam, que foi a própria moribunda, poucas horas depois defunta, que os empurrou para as areias.
Os dois jacentes, mão na mão, estavam no centro da capela, acompanhados na morte por quatro dos filhos, tal como o tinham sido em vida, qualquer deles ilustre e bem-amado: Pedro, Henrique, João e Fernando.
Eu e Madalena olhávamos para aquelas figuras com respeito e admiração: gente grande que soube fazer grande o reino. Os motivos por que os admirávamos seriam semelhantes, no caso de Madalena havia mais qualquer coisa. Uma comoção antiga e sanguínea percorria os séculos e vinha manifestar-se nela, no presente. Uma árvore em casa dela dizia-me que recuava um pouco mais. O tempo é relativo na vida da maioria das pessoas. Tudo o que vá para lá do avô nem sombras são: perdeu-se a linha temporal da família, e, no entanto, se recuarmos, haverá um pai e uma mãe perdidos, algures, que nos deram a alma. Madalena recuava, recuava, recuava e tinha sempre algo que lhe era familiar: nomes, factos, acontecimentos, fossem dignos ou não, que lhe tinham forjado forças e fraquezas. De algum modo, sabia dizer donde lhe vinha o rosto, a impetuosidade, a racionalidade, todo aquele romantismo entranhado e efervescente. Alguém, de lá de trás, tinha-lhe dado qualquer coisa e ela sabia quem. Tudo o que tinha de ruim e bom, de feio e belo, sabia o nome dos responsáveis que lhe caldearam as formas, os trejeitos. Tudo lhe fora depurado até à exaustão, por gente que tinha nome.
Eu, nem conjeturas podia fazer. Nem a volatilidade de um fantasma tinha. Seria bom? Seria mau? Era o que tinha de ser e por certo não gostaria de saber que estava associado a um qualquer pequeno Hitler, domador de escravos, sádico criminoso louco do meu passado. E, no entanto, todos, sem exceção, temos no sangue todo o tipo de gente, maldita ou não, com ou sem nome, conhecidos ou desconhecidos, fantasmas diluídos no tempo: eu desconhecia os meus demónios, ela, porventura, conheceria alguns dos seus.
Passámos pelas capelas imperfeitas e lá estava mais um filho de João. Um filho que foi, cuidadosamente, educado e preparado para ser tão bom ou melhor que o pai. E seria se a peste o não tivesse levado antes de se afirmar com toda a pujança governativa que tinha. A peste e a história foram injustas para ele porque a sua morte mergulhou o reino numa crise profunda de grandezas, glórias, misérias que perduraram cerca de século e meio. Alcácer Quibir foi o toque de finados de um pequeno reino que podia ter sido grande.

A história, memória e identidade entrelaçam-se nas pedras do Mosteiro da Batalha, ecoando séculos de glória e sacrifício. Este foi um pequeno trecho do meu livro "Madalena". Clique aqui para comprar na Amazon!
Comments