A ESPERANÇA QUE ME ANIMAVA
- Luis Manuel Silva
- 27 de mai. de 2024
- 3 min de leitura
A fotografia digital veio facilitar a vida de todos. Quem viaja e não viaja vai construindo memórias dos instantes mais significativos da vida: nascimento, casamento ou impressões significativas de um determinado momento feliz. Tudo isto é feito sem despesas adicionais, mas com o custo de irmos acumulando espaço, ao longo dos anos, no disco ou na nuvem.
Desde os meus tempos de jovem, fui tirando fotografias em máquinas analógicas com rolo. Nesses tempos, a fotografia era um passatempo caro. Por ser caro, a pose tinha de ser estudada para obter o melhor ângulo, luz e profundidade. O objetivo era tirar uma única fotografia que marcasse um acontecimento de vida. A palavra de ordem era poupar para gravar o melhor momento ao menor custo. Depois de reveladas, escolhiam-se as melhores de um rolo para serem colocadas nos álbuns de família.
Com essas fotografias, e slides, fui construindo carinhosas recordações nos meus álbuns. E tenho alguns, todos muito importantes: os arquivos do casamento, dos meus filhos, das férias, da tropa... Por serem instantâneos de felicidade, que marcaram as vivências de uma vida, decidi que deviam ser digitalizados para serem partilhados mais facilmente. Algumas dessas fotografias recuam até à minha meninice. Outras vão mais além, até aos anos juvenis dos pais e avós, quase até ao princípio do século XX.
Aqui há dias, apareceu-me uma foto dos meus tempos da tropa, quando andei pelas matas de Angola, no Leste. Nesses tempos de então, quando saía para o mato, além da mortalidade das armas, ia armado da inofensiva máquina fotográfica. Nunca mais esqueci o dia em que esta foto foi tirada. Foram cinco momentos de emoções fortes, diferentes e antagónicas vividas num só dia: medo, ansiedade, alegria, surpresa, esperança. O medo surgiu com um aglomerado de ganguelas à entrada de um quimbo: adivinhávamos o pior dos cenários. A ansiedade, depois do medo, surgiu devido a uma grávida em trabalhos de parto: a visita da fatalidade num lugar onde tudo faltava era frequente e indesejada. Enquanto não deu à luz, o enfermeiro não saiu de junto dela. Ajudamo-la! Depois veio a Alegria trazida por um rapagão de choro forte e branco! A surpresa foi quando vi uma criança negra vestida de pele branca! Finalmente, ao olhar para ela, vi naquele corpo nu, de olhos fechados, a Esperança que me animava.
O soba entregou-me a criança e colocou-a no meu colo desajeitado. Insistiu para lhe dar um nome! Foi a primeira vez que peguei num recém-nascido de minutos e senti-me bem! Para a história da vida do bebé, e da minha, ficou um nome: João Batista, nem ganguela nem estúpido. Foi uma inspiração de momento. Espero que tenha sido o mesmo para ele, pela vida fora. Se for vivo e feliz, tem cinquenta e dois anos.
Infelizmente, não fiquei com a foto da criança ao colo, acho que se estragou devido ao sol intenso e à inexperiência do fotógrafo. Mas fiquei com uma foto da alegria dos autóctones.
Deixo um pequeno texto, do livro que escrevi, sobre os momentos desse distante dia: um dos muitos que então vivi.
…
O nascimento de João Batista;
a felicidade que me deu em pegar nele,
nu, sangrado, babado e choroso no colo;
a pouca felicidade que por causa dele
dei às palhotas daquele miserável quimbo;
deu-me aquilo que me davas: a Esperança
que me devolvia a fé no Homem.
Nunca mais te vi, João Batista!
Apesar de tudo estar contra ti,
espero do mais sagrado da minha alma
que o Salvador te ajude a crescer livre,
com um sorriso nos lábios,
braços abertos para a vida.
Se João Batista estiver atento no Céu,
há de zelar para que sejas feliz.
…
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