A Catástrofe — Solidário com Myanmar
- Luis Manuel Silva
- 8 de abr.
- 5 min de leitura
Myanmar e as nações em redor foram fustigadas por um violento sismo. À desgraça de uma nação em guerra juntou-se outra: a devastação. Nem o terramoto fez com que a junta militar se condoesse para parar a guerra.

Fui para o lado das Terras do Sol Nascente em 2017. Foi a primeira vez. Já tinha passado por Istambul — o mais próximo que estive da Ásia —, América do Sul e alguns países da Europa. Foi uma viagem em contraciclo do que pretendia. Antes desta, tinha como prioridade quatro ou cinco objetivos. Mandrake e a bela Narda eram dois dos meus heróis e sonhava com uma viagem a Katmandu, no Nepal, quando tivesse orçamento folgado. Se quisermos ter um viver digno, devemos ser bons contabilistas das nossas vidas. Com uma vida de ajustes orçamentais, assistência à família e um agregado com três filhos, não havia magia de Mandrake para devaneios. Quem tiver três ou mais filhos sabe do que falo: começa pela alimentação, depois o crescimento, por fim a educação. O futuro, para aqueles que têm uma inabalável fé em Deus, será o que Ele quiser.

Neste processo, constata-se que os anos vão passando, os filhos crescendo com renovadas exigências, nós vamos envelhecendo e as viagens... bem, os orçamentos não são de elástico: adiam-se. Felizmente, antes do meu primeiro filho, e ao contrário de muitos casais, tive um vislumbre do que era ser suficientemente rico para me permitir alguns devaneios: nunca tive tanto dinheiro para gastar à “Lagardere”!, como se dizia então, nos meus dois, três anos de casado.

A Lapidação de Diamantes, hoje RTP, se não era a melhor, era uma das melhores empresas de Portugal a tratar bem os trabalhadores. Um amigo meu, lapidador, disse-me em tempos: éramos ricos, bem tratados e não sabíamos. Mais tarde, fui empobrecendo: Chapa ganha, chapa gasta. É a vida, temos de nos ajustar, não temos de que nos queixar.
Quando chegou a altura de pôr os pés no caminho, comecei mais uma vez pela Europa com o pensamento nas tais viagens adiadas: para além do Nepal, tinha de fazer a Índia, Antártida, Deserto e Rota dos Descobrimentos. Não fiz nenhuma, dificilmente farei alguma. Resta-me a consolação de me ter abeirado dos cheirinhos delas. Agora é o tempo de me ajustar ao que a cabeça dá. Não sou um aventureiro de raiz, mas nunca me furtei a uma boa aventura, desde que com a companhia de alguém que comungue do mesmo espírito. Ainda hoje, mergulhar naquelas paragens não é pera doce. Infelizmente, nunca fui suficientemente aventureiro para vadear como um eremita. Como não encontrei a companhia certa para andar por aquelas paragens, foram sendo adiadas mais uma vez: para o ano talvez.
Finalmente fiz a minha grande viagem, não para onde queria, mas para Myanmar, Laos e Tailândia. Não foi com a companhia, foi com as companhias certas. O terrível terramoto que abalou as paragens por onde andei, com epicentro próximo de Mandalay, destruiu quase por completo a cidade, Bagan e as aldeias do Lago Inle: locais por onde andei. Tive a sorte de visitar a região quando se abriu ao mundo e um pouco antes da junta militar tomar o poder. De seguida, voltou a fechar-se, eliminou o poder civil e tudo faz para destruir aldeamentos e matar pessoas. Até durante as prestações de socorro às vítimas do terramoto!

Em Yangon, vi a gigantesca imagem de um bonito e sereno Buda Reclinado, os pagodes e templos doirados; em Bagam contemplei belíssimos e antiquíssimos templos, fui envolvido pela magia das neblinas matinais e os entardeceres doirados do sol a cair sobre uma floresta de antigos pagodes semeados na planície florestal: alguns remontam ao virar do primeiro milénio; por fim, naveguei em pequenos barcos pelo deslumbrante Lago Inle, local com vivências quase intocáveis, desde tempos imemoriais, com abundantes aldeias lacustres. Naquele imenso espelho de água sereno, com culturas diversas sobre as águas, parou o tempo. Os pescadores remam pequenas canoas com uma mão apoiada numa comprida vara e a perna enrodilhada nela. Com a mão e a perna estabilizam ou impulsionam a canoa, com a outra mão, manobra uma grande, circular e cónica rede para a lançar nas águas.
Não tenho engenho nem palavras para descrever, muito menos para mostrar, mas posso propor para que façam uma busca na net: basta escrever Yangon, Bagan, Mandalay, Lago Inle. Depois é só clicar e seguir as imagens. Prometo que vale a pena. Para além destes, passei por muitos mais locais bonitos de se verem: florestas luxuriantes, rios caudalosos, o Triângulo Dourado do ópio e dos filmes de guerra franceses e americanos — o Inferno de Burma —, das pobres aldeias do Laos, do mítico e caudaloso Rio Mecom — dos portugueses —, os primeiros a explorarem aquelas paragens.
Pelas razões mais tristes e dolorosas para aquela gente simples e simpática, o terramoto trouxe-me à memória muito do que vi e possivelmente já não existe senão em ruínas. Sei que aquele povo, apesar de sofredor na história e nos cataclismos, sabe sorrir, é alegre, trabalhador e vai, mais uma vez, deitar mãos à obra para se reerguer e recuperar. Humildes, simpáticos, educados e bem falantes, não mereciam o que lhes aconteceu, muito menos os governantes que têm. Sem saberem falar inglês ou outro linguajar, esforçam-se por cativar as pessoas e fazem tudo para ajudar. Era assim quando lá estive, será assim agora porque é um povo que aprendeu a caminhar nos ritmos lentos do tempo. Não sei se será feliz no meio de tanta miséria. Mas acredito que sim, a avaliar pelo modo sereno e educado como caminham, curvados com as palmas das mãos em forma de oração, na cara, para entregar respeitosamente a oferenda a buda; ou aos monges que palmilham, descalços e de cabeça rapada, os caminhos com a “thabeik” para receber as ofertas comestíveis.

As mulheres, principalmente as jovens, protegem a pele da cara com a thanaka, um protetor solar feito com água e casca de árvore esmagada. Não sei o que as faz bonitas, se a Thanaka amarelada que põem na cara se o sorriso com que nascem. É um sorriso que nunca acaba. Poderá ser de felicidade?
É difícil conceber um povo feliz a conviver com a miséria. Ou então sou eu que não tenho olhos nem compreensão para assimilar a espiritualidade de um povo que faz por viver o melhor possível uma vida simples e de desapego. Sem nada que o realize, aos meus olhos, esperam poder desfrutar de uma vida plena na próxima reencarnação. Nós também. Acreditamos que nas paragens etéreas estará alguém para cuidar de nós. À cautela, fazemos os impossíveis para desfrutar antes. Até maldades.
Porque gosto da palavra oxalá, oxalá que recuperem, se realizem, sejam felizes à maneira deles — começo a compreendê-los e admirá-los. Os próximos anos, com tanta desgraça que os afligiu, vão ser muito difíceis. Comungo da mesma aflição.

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